8.8.11

Como comecei a escrever ou Comungar a existência por meio das palavras




Comecei a escrever depois que fiquei trancado, por uma noite, na biblioteca municipal da pequena cidade onde nasci. Eu tinha 11 anos e os livros me atraíam de maneira irracional. O objeto em si me fascinava antes de saber da potência das palavras contidas nele. Naquela madrugada os livros me serviram de travesseiro e cobertor, me deram abrigo e contaminaram o meu corpo; foi a minha primeira polução noturna. Primeiro a biblioteca foi meu refúgio, depois lugar de mistério em busca do enigma de ser. Minha paixão pelas palavras é física, minha imaginação está na pele e nos músculos, minha respiração capta os hiatos, os silêncios que podem significar mais do que qualquer significado aparente. Não sinto a literatura como algo simplesmente mental, as palavras são minha tentativa espiritual de me comunicar com os primeiros contadores de histórias, o invisível real e presente. Nesse sentido, a palavra é reveladora e só consigo contar uma história na atitude vital da escrita, e só consigo saber o que escrevo enquanto escrevo, tenho muitas vezes a sensação de espanto ao descobrir o caminho que se vai construindo, os saltos e saídas de um texto, o desejo de um personagem. A palavra que transforma, deforma, transcende e imana de si um segredo, uma sabedoria. Escrevendo é que sei o que quero ou o que posso dizer. E posso tudo. Como escritor, sinto que carrego o risco e o encanto de invadir a alma humana por meio da linguagem, de ferir e ser ferido, de amar e ser amado, e confesso ter imenso prazer nesse ato profundamente sagrado e profano, cósmico e cotidiano, denso e banal. É deste modo que aprendi a explorar o mundo e a existir nele. A experiência de viver no mundo, para mim, está intimamente atrelada à experiência da escrita, ao ato de sentar e escrever. Portanto, escrever para mim é experiência direta com a realidade e não fantasia, mesmo que o absurdo e o fantástico possam estar presentes, a escrita é real. Ato criador. Confesso não salvar-me longe do ato de escrever e da atitude subversiva de ler poesia e prosa. Penso na arte, de maneira geral, como espaço de possibilidades, de saber ser, saber o outro, saber curar e ser curado, saber viver, saber morrer, saber reinventar-se, saber revelar-se e revelar. Espaço de mergulho na ordem e no caos. A arte só é possível no impossível, sem medidas, sem fronteiras, sem demarcações, sem carimbos.
Ao lembrar-me agora daquela noite na biblioteca, penso que não foi o acaso que me deixou trancado lá, sozinho, foi a minha vontade íntima, e até então desconhecida, de fazer parte desse universo enigmático de comungar a existência por meio das palavras.

5 comentários:

Claudio Brites disse...

Marcelo, que bom que as portas podem ser trancadas com garotos dentro.

Marcelo Maluf disse...

Sim, Claudio, foi uma experiência revolucionária! Abraço

Carol Caetano disse...

comecei agora a explorar tuas idéias e fazendo um exercício para descobrir minhas epifanias, silenciei. descobri uma tua.

Marcelo Maluf disse...

Carol, é essencial compartilhar segredos com nossos pares. Os meus são todo mundo (ou aqueles que assim desejarem) Gracias por suas leituras. Abraço

Daniela Patricia dos Santos disse...

texto lindo, em cada palavra e lacuna. um trancamento que libera. adorei: "Minha paixão pelas palavras é física, minha imaginação está na pele e nos músculos, minha respiração capta os hiatos, os silêncios que podem significar mais do que qualquer significado aparente."
Gracias pela possibilidade de encantamento!


Imagem: Philip Guston