Personagem
em movimento contínuo, levando objetos de um lado para o outro.
Esses peixinhos, esses dóceis e
inocentes peixinhos. Dona Clarice os matou. Ela me jurou que foi sem querer. E
Clarice já me salvou tantas vezes que não consigo acreditar que ela esteja
mentindo. Todas as vezes que eu precisei, ela me disse sim. E sempre dissemos
sim uma à outra. Fosse para um pouco de açúcar, um pó de café ou o mistério de
uma palavra perdida em mim. Há muito tempo que somos vizinhas. Clarice nunca me
negou nada. Como é que pode alguém, propositalmente, matar criaturas tão
frágeis? ela disse. Seria completamente diferente se os mesmos peixinhos fossem
abocanhados por tubarões em alto mar, lá é assim que se vive, não é? É natural
que seja assim. Sempre achei digno morrer para servir de alimento ao outro. Se eu
pudesse escolher a minha morte, gostaria de ser devorada por uma jibóia branca
às margens do Rio Negro. Mas aqueles
peixinhos pareciam o Nemo. Não é justo que tenham morrido em vão dentro de um
aquário. Não foi por mal, Dona Clarice se distraiu e deixou tempo demais os
peixinhos sem comida. É isso que dá ficar transportando essas lembranças.
Personagem
em movimento contínuo, levando objetos de um lado para o outro.
Se vocês morassem aqui na minha cabeça, saberiam o que eu estou dizendo. Essas
coisas, esses objetos e livros que estou carregando, de lá pra cá e de cá para
lá. Todos têm o seu lugar certo, o seu jeito de caber no tempo e no espaço. O
difícil é saber qual é o lugar de cada coisa. Em qual lugar cada um desses
objetos é mais inteiro, mais pleno, mais potente? “A insustentável leveza do
ser”, do Milan Kundera, sempre me coube aqui no meu abdômen, às vezes desce e
se aloja a quatro dedos abaixo do meu umbigo. Eu gosto de pensar que me encaixo
no intervalo entre esse meu corpo e a minha sombra, e vivo como se estivesse
deitada numa pedra numa montanha da Ucrânia. É que eu sempre quis conhecer a
Ucrânia. Já perceberam quanta gente interessante vem de lá? Depois me levanto e exatamente ao meio dia eu consigo ficar mais completa. Era assim que eu me
deitava debaixo daquela jabuticabeira e ficava esperando as bolinhas negras
caírem sobre mim e me fazerem cócegas. Ali espichada na grama eu sonhava com o
meu futuro, com as diversas possibilidades de ser: bióloga, atriz, manicure,
taróloga, professora, cantora, psicóloga, jornalista da National Geographic. Sempre
me foi difícil pensar em mim como uma peça única, sempre me percebi muitas.
Personagem
em movimento contínuo, levando objetos de um lado para o outro.
Quem está aí? É você? Ela sempre faz isso comigo. Minha sombra sempre me
assusta, me ASSOMBRA. Que é que foi? É você de novo? Olhe aqui, você nem é
capaz de me encarar, não é mesmo? Olhe pra mim e vê se me deixa. E daí eu subia
no pé e espremia com meu corpo os galhos lotados de jabuticabas e outras eu
caçava com a boca. E lá de cima eu assistia minha sombra chorando no chão,
depois minha avó me chamava e me sentava no colo pra me dizer que eu tinha os
olhos grandes como jabuticabas. Depois ela fazia a melhor geleia de jabuticaba
do mundo. Hoje quando eu vou ao cinema, ao teatro ou a alguma exposição, procuro
aquele gosto, aquele sabor. Esse é o meu parâmetro estético. Se tiver aquele
gosto eu sei que é bom. Ou se as jabuticabas aparecerem em algum lugar. Foi
assim que eu me apaixonei pela performance do Joseph Beyus com o coiote. Não
foi pela ousadia ou pela dimensão poética da ação, foi por que os olhos do coiote
eram duas pequenas jabuticabas, e naquele gesto havia um risco, algo
desconhecido que poderia irromper do instante e mudar o curso das coisas. Por
isso é que eu gosto de mudar as coisas de lugar, gosto dos oceanos agitados e
do movimento bruto das tempestades, dessa força que vem sei lá de onde. Gosto
de afogar as mãos na terra úmida, de consertar portas, parafusar janelas,
perfurar metais, cortar galhos de árvores velhas, tirar restos de cabelos do
ralo, fazer tudo com ações precisas, para desafiar a lógica do meu ser, e
encontrar nos gestos mais simples do cotidiano minha grande alma. Talvez minha
grande alma seja uma velha bruxa descalça comendo jabuticabas e cuspindo as cascas na terra para servirem de adubo. É isso. Talvez eu seja o conjunto das
cascas cuspidas por uma velha bruxa descalça. E com essa consciência de casca
eu percebo que fico despejando os meus desejos para lá e para cá, para cá e
para lá, tentando encontrar o lugar exato no tempo e no espaço onde eles possam
viver para sempre, como esse abajur.
Personagem
em movimento contínuo, levando objetos de um lado para o outro.
Queria que a Dona Clarice fosse a minha avó, e que todas as gavetas do
meu corpo estivessem abertas como as gavetas da Vênus, do Salvador Dalí. E, aos
poucos, eu fosse tirando as minhas miudezas de dentro das gavetas para usá-las
como colar ou pulseiras.
Tive uma ideia outro dia que ficou em minha cabeça: fazer uma escultura
da minha sombra, com jabuticabas. Depois de pronta, eu abraçaria a escultura
até sentir as bolinhas negras explodindo. Com o líquido que escorresse eu faria
uma calda doce e quente. Nua eu me banharia da cabeça aos pés, até que a sombra
grudasse em meu corpo, até que eu compreendesse que a sombra sou eu. Até que eu
não me assombrasse mais.
(publicado originalmente na Revista Vermelho)